Ana Godinho
“Aprender a comunicar é um pouco como aprender a jogar ping-pong. Quando um jogador é melhor que o outro, deve adaptar continuamente a sua maneira de jogar à do seu par, a fim de que este possa bater a bola e melhorar a sua técnica.”
Manolson (1985, 3)
É indiscutível a interdependência entre as oportunidades de interacção comunicativa de que a criança usufrui, e a aquisição da linguagem verbal. Assumem papéis importantes, a linguagem que a criança ouve à sua volta e aquela que lhe é especificamente dirigida, sobretudo pelo adulto. Diferentes padrões de interacção adulto-criança, resultarão em padrões diferentes de linguagem produtiva.
A maioria dos investigadores concorda que as interacções entre os bebés e os seus primeiros cuidadores fazem parte das influências mais importantes no desenvolvimento, embora sejam atribuídos diferentes pesos aos factores comportamentais, biogenéticos, cognitivos, sociais ou ambientais. É, no entanto, consensual que o desenvolvimento global resulta das interacções entre esses factores e que a interacção adulto-criança constitui “um processo bidireccional, no qual os comportamentos de cada parceiro influenciam e moldam as respostas, expectativas e concepções futuras do outro participante, bem como a própria natureza do processo interactivo” (Berger, 1990, 102).
No que se refere às crianças com síndrome de Down, a interacção adulto-criança é com certeza condicionada por vários factores, nomeadamente pelo facto de a criança não constituir um interlocutor muito competente, o que reduzirá provavelmente a quantidade e qualidade das trocas comunicativas. O facto de a criança ser normalmente compreendida por aqueles que lhe são mais próximos (família, professores, círculo de amigos), pode fazer com que as suas dificuldades na comunicação com pessoas não familiarizadas com o seu discurso, sejam um pouco subestimadas (Buckley, 1999).
O investimento feito pelo adulto esquece também frequentemente a perspectiva global da linguagem, enfatizando os aspectos lexicais, em detrimento da função comunicativa e da sintaxe. Na demasiada prontidão do adulto, em responder e repetir os enunciados da criança, bem como a tendência para lhe facilitar a vida, formulando por exemplo, perguntas fechadas em vez de abertas, perdem-se oportunidades de expandir as suas produções e não se respeita o seu ritmo de compreensão e processamento mais lento (Buckley, 1999).
É claro actualmente, que as crianças com síndrome de Down beneficiam de informação complementar, relativamente à auditiva. Cada vez mais se refere a comunicação total, na intervenção com estas crianças, já que a sua maior facilidade em processar informação visual leva a que o uso da escrita e da linguagem gestual se transformem em recursos de grande utilidade para o desenvolvimento da linguagem expressiva e para facilitar a comunicação em geral.
Quase todos os estudos efectuados com crianças com síndrome de Down, relativamente ao discurso que lhe é dirigido pelo adulto, referem-se a mães. Byrne e Buckley (1993), referem que os estudos mais antigos, nomeadamente de Buium, Rynders e Turnure (1974), Kogan et al. (1969) e Marshall et al. (1973), indicam que as mães produzem um discurso com “formas mais primitivas do que as mães de crianças normais” (p. 108), o que, segundo os autores, significa que as mães podem estar a inibir o desenvolvimento da linguagem das crianças, por utilizarem padrões conversacionais menos sofisticados.
Mervis (1990) refere que a maioria dos estudos sobre o impacto da linguagem materna no desenvolvimento da linguagem da criança sugere que algumas características do estilo directivo podem ser prejudiciais para o desenvolvimento inicial da linguagem, enquanto que certas características de um estilo mais facilitador de conversação (perguntas, comentários sobre a actividade ou verbalização da criança) correlacionam-se positivamente com medidas de crescimento da linguagem. Com base num estudo longitudinal, Mervis considera que as mães de crianças com síndrome de Down usam mais características linguísticas típicas do estilo directivo do que do estilo facilitador de conversação, nomeadamente, “pedidos de acção, incitamento à acção, uso global de directivas e feed-back negativo da vocalização da criança” (1990, 284). No entanto, a investigadora enfatiza a importância de uma segunda variável relativamente ao comportamento linguístico materno: contingência semântica do comportamento linguístico ou não linguístico da criança, sugerindo que talvez seja esta a variável materna relevante na aquisição inicial da linguagem. Mervis considera que a directividade não ocorre automaticamente com a falta de contingência semântica, já que algumas características típicas do estilo directivo são semanticamente contingentes no discurso da criança. Conclui ainda do seu estudo, que o padrão de resultados se enquadra melhor na explicação da contingência semântica do que na explicação do estilo directivo.
Um estudo de Jones (1977, citado por Berger, 1990, Mervis, 1990) mostrou que as mães de bebés com síndrome de Down eram mais directivas e menos dependentes da criança, durante as trocas interactivas, levando a que os bebés experimentassem menos interpretações responsivas e menor apoio das suas próprias actividades. Jones defende que as mães não permitiam tanto como as mães das crianças normais, oportunidades de escolha do tópico de conversa e que a nível do contacto ocular, as crianças com síndrome de Down não recebiam tanto feed-back como as outras. Esta investigadora evita a atribuição de responsabilidade destes desvios interactivos a qualquer dos parceiros, especulando, no entanto, que a maior directividade das mães pode ter surgido na sequência da passividade das crianças, que iniciam menos sequências do que as outras crianças, levando as mães a sentir que precisam de ajudar e que os seus filhos precisam de mais directividade. Estas mães, em entrevistas no âmbito do estudo, referiam-se repetidamente à necessidade de ensinar os filhos durante as interacções verbais, retirando prazer sobretudo dos seus sucessos em situações de ensino.
Curiosamente, Berger (1990) refere observações no meio familiar de crianças com síndrome de Down, em que os irmãos, menos ansiosos que os pais relativamente ao desempenho dos irmãos com síndrome de Down, se mostraram mais eficazes em promover comportamentos de jogo do que os pais.
Também Cardoso-Martins et al. (1985) desenvolveram um estudo comparativo da interacção de mães com crianças com síndrome de Down pré-linguísticas, e com crianças com desenvolvimento normal. De acordo com os seus resultados, a orientação da interacção mãe-criança foi claramente dirigida pela mãe no grupo com síndrome de Down e dirigida pela criança no outro grupo, padrão que se reflectia, nomeadamente na incidência mais elevada de imperativos e mais baixa de rótulos adequados à criança. Os autores sugerem que as crianças podem, pela sua maior passividade, deixar a responsabilidade de iniciar a interacção para as mães, bem como fornecer menos pistas de como categorizam os objectos. Tal como Jones, também consideram que as mães provavelmente sentem que os filhos precisam de maior directividade, o que leva a um estilo de interacção dirigido pela mãe, visível na maior proporção de imperativos.
Ainda no que se refere à directividade, Roach et al. (1999) referem que o discurso das mães para os seus filhos com síndrome de Down tende a ser caracterizado por inúmeros pedidos explícitos ou implícitos (vai buscar, põe dentro, etc.), como mostram os resultados de um estudo levado a cabo por estes autores (1998), em que as mães de crianças com síndrome de Down exibiam uma média de quase 25% mais deste tipo de directivas, durante o jogo livre, do que as mães de crianças com desenvolvimento normal. Apesar disso, os autores consideram que as mães equilibram a sua directividade com comportamentos de apoio, nomeadamente usando níveis mais elevados de elogio, relativamente às outras mães e apresentando níveis elevados de responsividade aos sinais comunicativos dos filhos, ou seja, regulando o ritmo das suas intervenções directivas para seguir e reforçar as tentativas dos filhos em jogo social. Utilizando como medida comportamental das mães, a estruturação vocal responsiva, que se refere à probabilidade das mães seguirem as vocalizações dos filhos com directivas vocais, estes investigadores defendem que os seus resultados sugerem que “o uso selectivo de comportamentos directivos das mães a seguir às vocalizações dos filhos pode representar uma estratégia chave para aumentar a participação positiva das crianças no jogo” (Roach et al., 1999, 108), uma vez que aquelas que a usavam, estavam tentando construir os esforços comunicativos dos filhos, encorajando contribuições interactivas maiores e eram significativamente menos susceptíveis de serem restritivas do que as que não a usavam.
As investigações neste campo têm mostrado que a níveis mais elevados de responsividade materna, correspondem níveis mais altos de envolvimento das crianças (Landry e Chapieski, citados por Berger, 1990; Schneider e Gearhart, 1988, citados por Roach et al., 1999). Também o nível de responsividade das mães pode variar com a medida em que os filhos mostram responder aos seus esforços para os guiar.
Byrne e Buckley (1993) efectuaram um estudo comparativo, com mães de crianças com síndrome de Down e de crianças com desenvolvimento típico, dedicando especial atenção ao tipo de perguntas formuladas pelas mães e à forma como os problemas de inteligibilidade afectam as conversações mãe-criança. Os resultados mostraram o efeito inibidor das perguntas fechadas, enquanto que as abertas tenderam a produzir enunciados mais longos; as mães deixaram espaços muito curtos de silêncio entre enunciados, dando pouco tempo às crianças para intervenções espontâneas, o que, segundo as investigadoras, se deve a uma tentativa de controlar a conversa, para melhor compreender as crianças; muitas mães produziam longas cadeias de enunciados, não davam tempo de resposta, respondendo pela criança e mudavam o tópico sem que a criança fizesse qualquer intervenção verbal. De acordo com as autoras, e pelo facto de as crianças com síndrome de Down parecerem compreender mais do que expressam, as mães têm dificuldade em decidir se se devem dirigir à criança intelectual ou à criança linguística.
Miller (1996) descreve cinco factores que, segundo ele, afectam as interacções mãe-criança, considerando que alguns deles podem ter consequências negativas para a aquisição da linguagem: (1) Tanto as mães como as crianças podem ser menos responsivas umas às outras; (2) as mães de bebés com síndrome de Down tendem a falar ao mesmo tempo que eles vocalizam; (3) as mães de crianças com síndrome de Down falam mais depressa e produzem mais enunciados do que as mães de crianças normais; (4) tendem a ser mais directivas, instrutivas e controladoras; (5) nem todas as mães de crianças com síndrome de Down, têm os mesmos padrões de interacção, a nível de directividade e elaboração.
Por sua vez, Mittler e Berry (1977, citados por Buckley,1999) consideram que o facto de ser atingido com frequência um nível inferior ao que poderia ser esperado, se pode dever, em parte, a uma falha no providenciar um grau apropriado de exigência, expectativa e oportunidade para um desempenho linguístico eficaz. Embora uma pergunta constitua uma exigência de resposta, há perguntas mais exigentes que outras e a tendência do adulto para reforçar respostas de uma palavra, pode ser parcialmente responsável pelo atraso em atingir a fase de duas palavras.
Apesar de grande parte da investigação existente apontar para diferenças no discurso das mães de crianças com síndrome de Down, relativamente às mães de crianças normais, encontram-se na literatura outros estudos que apontam em sentido contrário. Alguns investigadores consideram que as diferenças encontradas no discurso materno podem dever-se ao facto de as crianças terem sido comparadas com crianças da mesma idade cronológica. As mães podem estar a adaptar o seu discurso ao nível cognitivo dos filhos (Buckhalt et al., 1978; Rondal, 1978). Rondal critica a comparação em termos de idade cronológica, já que em crianças com o mesmo nível cognitivo não encontrou diferenças significativas no discurso materno.
Para além do trabalho de Rondal, Leitão (2000) refere outras investigações (Fischer, 1987; Tannock, 1988, Davis et al., 1988, entre outros) que consideram que as mães das crianças com síndrome de Down não são mais directivas e, por outro lado, são mais responsivas aos sinais e iniciativas dos filhos. Leitão considera que a maior directividade das mães tem sido analisada em termos de frequências e que é importante analisá-la como um fenómeno multidimensional, onde devem ser tidos em conta os contextos em que os comportamentos ocorrem, o que no seu estudo permitiu verificar que as mães dos dois grupos se mostraram igualmente sensíveis e responsivas relativamente aos comportamentos das crianças. Além disso, a dimensão reduzida das amostras tem levado a que as mães das crianças com síndrome de Down fossem consideradas como um grupo homogéneo, diferenciado das mães das crianças normais e caracterizado por um único estilo interactivo. Do seu estudo, efectuado com um número alargado de sujeitos, este autor conclui que as díades se encontram agrupadas em classes homogéneas, mas que essas classes integram díades tanto do grupo das crianças normais como do grupo das crianças com síndrome de Down. Na sua opinião, a directividade das mães desempenha um papel “facilitador e estruturador da conversação, promovendo a participação das crianças no processo interactivo” (Leitão, 2000, 76). O autor relata ainda, que as mães dos dois grupos no seu estudo, recorrem a comportamentos directivos nas mesmas situações e contextos. No entanto, as crianças com síndrome de Down exibem uma maior assincronia, envolvendo-se sistematicamente em actividades não estruturadas, socialmente pouco aceitáveis ou simplesmente mostrando ausência de actividade por períodos de tempo maiores, o que leva as mães a aumentar a frequência de comportamentos reguladores, na tentativa de envolver os filhos no processo comunicativo. Deste modo, o autor considera que “a maior directividade das mães das crianças com síndrome de Down não deve ser entendida como um défice comportamental, mas como uma manifestação de sensibilidade e adequação às características dos filhos” (p. 75). Também Peterson e Sherrod (1982, citados por Byrne e Buckley, 1993) encontraram diferenças significativas entre a linguagem dirigida pelas mães a crianças com maior Comprimento Médio do Enunciado (CME) e a crianças com menor CME, e sugerem que as mães adaptam a sua linguagem às capacidades linguísticas dos filhos.
A literatura nesta área não é consensual, encontrando-se tanto estudos que apontam para maior directividade e diferenças no discurso das mães das crianças com síndrome de Down, como outros que referem que essa directividade depende da idade e que a um maior desenvolvimento cognitivo corresponde menor directividade, ou ainda outros que não consideram haver diferença significativa entre o discurso das mães destas crianças e as das crianças com desenvolvimento normal (Murillo, 1993).
No que se refere às crianças com atrasos no desenvolvimento, nomeadamente crianças com síndrome de Down, a literatura é parca em estudos com outros adultos significativos, para além das mães, como por exemplo os pais. A tendência para a intervenção centrada na família tem levado os pais a envolver-se mais, nomeadamente a nível de programas de intervenção específicos, mas a investigação nesta área tipicamente recai na interacção mãe-criança. No entanto, encontram-se relatos de alguns estudos envolvendo pais de crianças com necessidades educativas especiais, mais propriamente estudos comparativos entre pais e mães. Giralometto e Tannock (1994) referem dois estudos com crianças autistas. No primeiro, em que as crianças evidenciavam muito pouca ou nenhuma linguagem, os resultados indicavam que os pais usavam menos ordens e perguntas que as mães, enquanto que no segundo, com crianças com linguagem verbal, os pais usavam mais ordens e imperativos mas um número semelhante de perguntas. Referem ainda um estudo comparativo de crianças com síndrome de Down e crianças com atraso de desenvolvimento de etiologia desconhecida, que mostrou consistência entre as interacções de pais e mães no uso de ordens e perguntas.
Giralometto e Tannock (1994) consideram que a ausência de pais nos estudos os limita, já que ignoram o factor stress por parte dos pais de crianças com deficiência, ignorando assim também o facto de os estudos que investigaram este fenómeno apontarem para diferenças sistemáticas entre pais e mães em termos de stress, ou seja, os pais surgem menos deprimidos e pessimistas do que as mães, mas com mais dificuldades relativamente à sua interacção com os filhos.
Estes autores desenvolveram um estudo em que pretenderam comparar a qualidade e quantidade da directividade nas interacções de pais e mães de crianças com atraso no desenvolvimento, analisando o controlo de resposta, o controlo de tópico e o controlo de turnos. Neste estudo não foram encontradas diferenças entre pais e mães no grau em que rotulavam itens lexicais, comentavam ou respondiam aos filhos. No que se refere às três dimensões de directividade analisadas, não relatam diferenças a nível do controlo de turnos, mas os pais diferiam a nível de controlo de resposta e de tópico: os pais usaram mais turnos para forçar uma resposta da criança e tendiam mais a mudar o tópico quando a criança não se envolvia. Concluem assim, que tendo em conta que pais e mães foram igualmente responsivos quando a criança se envolvia na interacção, a maior directividade evidenciada pelos pais, pode ser indicadora de expectativas mais altas a nível da participação social da criança e pode ser interpretada como estratégia alternativa para envolver a criança na interacção.
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Para citar este artigo: Godinho, Ana (2003), A interacção comunicativa nas crianças com síndrome de Down. in. A Interacção Comunicativa entre a Criança com Síndrome de Down e o Pai. Universidade do Algarve. Dissertação de mestrado, não publicada.
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